Total de visualizações de página

quarta-feira, 22 de março de 2017

SOBRE A HIPOCRISIA DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO (ou quanto vale uma boa refeição)

Bom dia. Compartilho a fala que o Prof. Dr. Eduardo Donizeti Girotto fez no I Seminário de Formação Política do SINTEPP, em Marabá,PA.
SOBRE A HIPOCRISIA DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO (ou quanto vale uma boa refeição)
Desde o seu lançamento, a Medida Provisória da Reforma do Ensino Médio tem sido marcada por uma série de análises e discussões que suscitaram inúmeras dúvidas e angústias, principalmente naqueles que estão à frente do processo educativo, os docentes e discentes das inúmeras escolas públicas de todo o pais. Muito já foi escrito e analisado em relação a MP e as suas possíveis implicações na dinâmica do Ensino Médio brasileiro. Sendo assim, gostaria, neste texto, escrito após a aprovação da MP (feita à revelia de milhares de estudantes que, em 2016, produziram a maior onda de ocupação de escolas públicas do mundo), abordar um dos aspectos que considero essencial nesta análise: a hipocrisia da MP e dos seus formuladores.
Passemos aos argumentos. Um dos elementos que mais chama a atenção no processo de lançamento, tramitação e aprovação da Reforma do Ensino Médio diz respeito ao fato de que, em nenhum destes momentos, o MEC apresentou um amplo diagnóstico desta etapa da educação básica, o que poderia contribuir no debate democrático e no entendimento da população acerca da necessidade ou não de aprovação da referida lei. Os argumentos básicos utilizados pelo governo se sustentaram na necessidade de melhorar os índices de desempenhos educacionais, medidos por avaliações padronizadas (leia-se, testes de múltipla escolha). Vale ressaltar que tais índices são também bastante sofríveis no Ensino Fundamental e nos cursos superiores, em especial os privados, o que, nesta lógica defendida pelo MEC, suscitaria, no mínimo, uma proposta de reforma de toda a educação brasileira.
Esta falta de diagnóstico pode ser explicada, em nossa perspectiva, por pelo menos duas hipóteses: de um lado, a incompetência do Ministério da Educação e de todos os seus órgãos em acompanhar as principais problemática da rede de ensino, descumprindo, inclusive, uma de suas atribuições constitucionais, regulamentada também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. Do outro, uma profunda hipocrisia, uma vez que, sabendo e reconhecendo as condições reais do ensino médio no Brasil, os membros do atual governo optaram por ocultar, propositalmente, estas questões fundamentais para se pensar uma efetiva reforma do Ensino Médio que vise a ampliação do acesso, permanência e a apropriação dos conteúdos, conceitos e linguagens de diferentes áreas do conhecimento. A publicação, em 8 de novembro de 2016, do relatório do 1º ciclo de monitoramento das metas do Plano Nacional de Educação (2014-2024), revela-nos que a validade da segunda hipótese.
Tal relatório, feito pela Diretoria de Estudos Educacionais do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (INEP), órgão subordinado ao Ministério da Educação, é parte fundamental do processo de acompanhamento e execução do Plano Nacional de Educação (2014-2024) e traz um amplo panorama dos desafios a serem enfrentados nos próximos anos para que as ações definidas no documento tenham efetivação. Vale ressaltar que o PNE foi construído com ampla participação da sociedade civil organizada, em um processo que durou mais de quatro anos, marcados por intensas disputas e negociações até a promulgação do texto final. No documento, há uma meta específica relacionado ao Ensino Médio. Trata-se da Meta 3, composta por dois grandes desafios: 1. Universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 a 17 anos e; 2. Elevar, até o final do período de vigência do PNE, a taxa líquida de matrículas no Ensino Médio para 85%. No primeiro relatório, é possível perceber que em relação aos dois desafios, estamos muito distantes de alcançar o pressuposto no PNE em relação a esta da educação básica.
Um primeiro dado é fundamental para entendermos o quão distante estamos: existem, ainda hoje, mais de um milhão e seiscentos e cinquenta mil jovens, entre 15 e 17 anos, fora da escola. Quando verificamos a taxa líquida de matrícula no Ensino Médio, o dado de 2016 revela que temos apenas 65,7% de acesso. Se levarmos em consideração apenas os jovens de 15 a 17 anos que fazem parte dos 25% mais pobre da população, a taxa de matrícula líquida do ensino médio cai para 52%. Processo semelhante ocorre quando analisamos as matrículas dos jovens negros e moradores do campo, cujas taxas de matrículas são 59,4% e 52,6%, respectivamente. O que os dados deixam claro é que o primeiro grande desafio que qualquer mudança séria no ensino médio precisaria enfrentar é garantir que esta etapa da educação básica fosse acessível a todos os estudantes, não apenas ampliando o número de vagas, escolas e salas de aulas, mas elaborando políticas transversais de permanência que reconheçam as condições socioeconômicas dos estudantes brasileiros que os levam a abandonar os estudos. Tais políticas, por sua vez, pressupõem ampliação dos recursos e fontes de financiamento. No entanto, não é isso o que indica o documento e a medida provisória da reforma do Ensino Médio.
Ao avaliar a meta 20 do plano, que se refere a ampliação dos investimentos públicos em educação até alcançar o patamar de 10% do PIB em 2024, o relatório aponta que ainda estamos distantes deste índice. Em 2014, o investimento público direto atingiu 5% do PIB (6% se levarmos em consideração o investimento total em educação, o que incorpora os recursos públicos repassados para a iniciativa privada). Além disso, o relatório aponta para uma estabilização da curva de crescimento, que vinha em elevação desde 2004, saindo do patamar de 3,8% naquele referido ano até alcançar os valores atuais. Analisando o total de recursos investidos no ensino médio (R$ 64.510.000.000 em 2014) e dividindo este montante pelo total de matrículas nesta etapa da educação básica na rede pública (6.427.370), chegamos ao valor de R$10.036 por aluno/ano ou R$836 por aluno/mês, muito abaixo das mensalidades cobradas pelos principais colégios privados do país e cerca de um terço da média dos países da OCDE, segundo o último relatório Education at a Glance, lançando em 2016.
Esta situação fica ainda pior quando somamos ao total de alunos matriculados aquele montante de 1.650.602 jovens de 15 a 17 anos que ainda não são atendidos no ensino médio. Se houvesse o atendimento a todos estes estudantes, o gasto anual por aluno cairia para R$7985 ou R$665 por aluno/mês. É preciso ressaltar que, com estes valores atuais de investimento, as diferentes redes de ensino pública atendem apenas 6,5% das matrículas em ensino integral. Trata-se, portanto, de dados que nos revelam o longo percurso que temos até a efetiva universalização do Ensino Médio.
E aqui vai se delineando de forma cada vez mais evidente a hipocrisia presente na reforma do Ensino Médio e nos discursos de seus elaboradores. Para escancará-la, penso que o próximo argumento é fundamental. Segundo os dados disponíveis no próprio site do MEC, o governo propõe ampliar o acesso ao ensino médio, com ênfase no ensino em tempo integral, investindo R$166 a mais por mês e por aluno. Para entender o que este “montante” de recursos significa, um cálculo pode nos ajudar. Imaginemos que estes alunos e alunas que passarão a ficar o dia inteiro na escola necessitem fazer mais uma refeição entre os turnos, o que nos parece bastante razoável. Imaginemos também que todo este recurso a mais, investido pelo governo, será destinado totalmente para o custeio desta refeição. Se levarmos em consideração o total de 20 dias letivos em um mês, cada refeição feita pelos alunos e alunas não poderá custar mais do que R$8,30. No limite, o que tal recurso anunciado pelo governo significa é somente uma refeição malfeita entre dois turnos de uma escola precária.
Portanto, tal número apresentado pelo governo só pode ser entendido como uma grande piada de mau gosto. Ou pior, como uma estratégia de ampliar os mecanismos e as modalidades de privatização da escola pública que já vêm sendo postas em prática no país há algumas décadas. Como estes mecanismos estão presentes na MP do Ensino Médio?
Uma das principais medidas apresentadas pelo governo como a principal ação da reforma se refere a ampliação da carga horária anual das atuais 800 horas para 1400 horas em 2022, com uma elevação para 1000 horas anuais já em 2017. No entanto, em nenhum momento do texto, está explicito que a realização destas horas se dará na escola normal. Ao contrário, em dois momentos, pelo menos, (trata-se do artigo 4º da MP, que altera os artigos 36 da LBD, em especial os parágrafos 6 e 11) o texto deixa claro que tais horas poderão ser computadas, considerando-se as atividades desenvolvidas pelos estudantes em outros contextos, com especial destaque para a vinculação ao setor produtivo. Além disso, o texto aponta que para atingir o total de horas definidas na MP, os sistemas de ensino poderão estabelecer parcerias e convênios com instituições que atuem com educação à distância.
Esta lógica de ampliar carga horária a partir de parcerias com instituições privadas e com o setor empresarial parece estar muito bem desenhada no Médio Tec., programa anunciado em março de 2017 pelo Ministério da Educação e que propõe oferecer 82 mil vagas em cursos técnicos, ao custo de 700 milhões de reais por ano. É importante sublinhar que cada vaga neste programa custará ao governo federal R$8536 ano/ aluno, ou R$711 aluno/mês, valor muito próximo ao aplicado atualmente para manter o ensino médio brasileiro. Há alguma coisa muito errada nesta conta, ainda mais se nos perguntarmos como serão oferecidas estas vagas? Resultarão da ampliação das matrículas nos Institutos Federais (IFs), que já oferecem cursos técnicos e profissionais reconhecidamente de qualidade, possuindo uma rede de escola distribuída pelos diferentes estados do território brasileiro? Ou serão compradas de instituições privadas, que oferecem cursos profissionais supostamente baratos, de qualidade duvidosa, na modalidade à distância? Afinal, esta primeira medida de regulamentação da Reforma do Ensino Médio revelará, enfim, a essência deste processo, qual seja, a ampliação dos mecanismos de privatização da educação pública brasileira?
Por isso, é fundamental que acompanhemos o lançamento do Médio Tec e sua execução, uma vez que, por se tratar de uma política de incentivo a implementação do Ensino Médio Integral, que pressupõe o repasse financeiro do governo federal aos estados e municípios que adotarem as medidas propostas na MP, as ações feitas pelo MEC nos próximos meses deixarão claro o direcionamento para a execução da Reforma do Ensino Médio e suas reais intenções. Se de fato a intenção do MEC, como expresso na intensiva propaganda em rádio, televisão, internet e nas portas das escolas, é ampliar a autonomia dos estudantes em relação a escolha dos seus percursos formativos no Ensino Médio, é preciso que façamos alguns questionamentos: será que, concomitante ao lançamento do Médio Tec., teremos uma política de construção, reforma e ampliação dos laboratórios de ciências, com o intuito de garantir que todos os estudantes possam optar pelo percurso formativo em Ciências da Natureza? Teremos um amplo programa de implantação, reforma e ampliação das bibliotecas escolares, fundamental para todos os percursos formativos, em especial, de ciências humanas e sociais aplicadas? Será lançado um programa de formação continuada docente, com o intuito de discutir o novo currículo do ensino médio e suas implicações didáticas? E de valorização salarial e de carreira? Teremos uma política de busca ativa destes milhões de estudantes ainda fora do ensino médio, complementada por ações de permanência que evitem a evasão dos estudantes? A forma como o governo atual responderá, através de políticas públicas a estas questões, revelará o tamanho da hipocrisia que está na base da reforma do ensino médio.
No entendimento desta hipocrisia, outra questão nos parece fundamental: como ampliar o ensino médio, garantindo acesso e permanência a todos, possibilitando a real liberdade de escolha do percurso formativo, sem abdicar de uma formação integral e articulada em diferentes áreas, conhecimentos, conteúdos e linguagens, com a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional que limita a elevação dos gastos públicos à inflação do ano anterior? Com a PEC, trata-se, no limite, de manter o Estado do tamanho que está, mesmo que tenhamos ainda um aumento demográfico e, consequentemente, de demanda por serviços públicos. No caso do Ensino Médio, a aprovação da PEC do teto dos gastos irá significar que, àqueles 1.650.000, se somarão milhares de outros jovens, expulsos de um sistema educacional que insiste, desde a sua origem, a ser lugar da reprodução de privilégios e da hipocrisia expressa em discursos e leis que só servem aos interesses daqueles que, há séculos, lapidam o país, produzindo miséria e morte.
Portanto, a cada nova medida tomada pelo Ministério da Educação vai se comprovando a hipótese que já defendemos em outros textos e artigos de que o principal objetivo da Reforma do Ensino é diminuir os custos da educação brasileira, conforme apontado pelo Banco Mundial em documento publicado em 2010 (Alcançando a Educação Classe Mundial no Brasil: a próxima agenda). Neste documento, o órgão indica a necessidade de uma reforma do ensino médio com ênfase no ensino técnico e profissionalizante, com ampla parceria com o setor produtivo. Além disso, aponta a necessidade de se diminuir os custos com os professores e professoras no país e para isso propõe mudanças na formação e nas condições de carreira e trabalho dos professores. A ideia do notório saber, expressa na MP do Ensino Médio, é defendida de forma clara pelo Banco Mundial como uma das soluções para este barateamento.
Neste sentido, é preciso compreender a reforma do Ensino Médio e seus caminhos de execução como mais um momento da ampla disputa pelo orçamento público que hoje se desenvolve de forma mais intensa no Brasil. Na lógica dos administradores da dívida pública, daqueles que lucram com os exorbitantes juros, importa uma reforma do ensino médio que transfira recursos públicos para a iniciativa privada, seja através da compra de sistemas apostilados, cursos à distância, pagamento de bolsas em colégios particulares. Além disso, interessa reduzir o peso do salário docente, a maior categoria do serviço público no Brasil, sobre os orçamentos da União, dos Estados e Municípios, ampliando a margem de recursos para o pagamento dos juros da dividida. Por isso não de se estranhar que apareçam, a cada momento, novas propostas de terceirização e contratação precária de docentes, com a entrega da gestão das escolas às Organizações da Sociedade Civil. Por fim, interessa, profundamente, a diminuição do custo da mão-de-obra no país. Para isso, é fundamental inundar o mercado de profissionais com diplomas de nível médio, preparados para o trabalho precarizado em um contexto de 13% de desemprego. Somada as reformas da previdência e trabalhista, a reforma do ensino médio é, neste sentido, mais um momento da disputa entre capital e trabalho no país.
 Com isso, é evidente que não há, por parte dos elaboradores da MP do Ensino Médio, uma sincera preocupação em melhorar a qualidade desta etapa da educação básica, possibilitando aos jovens uma formação que lhes permita compreender o mundo através da apropriação de conceitos, conteúdos, linguagens, técnicas e procedimentos de diferentes áreas do conhecimento. Ao contrário, seus principais objetivos consistem em atuar a serviço dos grandes organismos internacionais que vêm na educação pública mediação necessária para disputar os orçamentos públicos e, no limite, os projetos de Estado e sociedade. Por onde passaram, tais reformadores produziram uma escola pública cada vez mais desigual, como pode ser percebido no caso sintomático da rede estadual de São Paulo que há mais de 20 anos é organizada a partir desta perspectiva e que só nos últimos 10 anos perdeu 2 milhões de alunos e, nos últimos dois, 40 mil professores.
Mas alguns membros do MEC poderiam insistir em dizer que não há alternativa a esta reforma do Ensino Médio. Aqueles que assim o fazem, reforçam a hipocrisia de suas posições. Como é possível afirmar não haver alternativa, diante de uma rede estruturada de Institutos Federais (IFs) que, ano após anos, têm sido reconhecidos, nacional e internacionalmente, como sinônimo de educação de qualidade. Alguns poderiam dizer: mas são escolas que selecionam os seus alunos e alunas a partir de um rigoroso processo. Em certa medida, tal seleção tem uma importante influência no processo educativo dos IFs. Mas não pode ser tomada como única variável explicativa. A presença de professores com dedicação exclusiva, valorizados, com carreira e condições de trabalho, em escolas bem equipadas, com corpo técnico estável, com projeto pedagógico integrado entre formação básica e técnica-profissional são também variáveis fundamentais para compor os resultados dos IFs. Para entender a importância de todas estas variáveis citadas anteriormente, peço aos representantes do MEC que me apontem um país que tenha alcançado padrões de qualidade educacional elevados sem enfrentar todas estas questões que, em nossa perspectiva, são basilares de todo processo educativo.
Por isso, é preciso denunciar, a todo o momento, a hipocrisia desta reforma que a cada novo ato se revela de forma mais evidente. É preciso desmascarar os seus formuladores, revelando para quem trabalham, a quais interesses respondem, o que ganham com as ideias que fingem defender. Como uma das pautas para unificar a luta, faz-se necessário defender que as 20 metas propostas do Plano Nacional de Educação (2014-2024) sejam plenamente cumpridas, em especial no que se refere a ampliação dos investimentos públicas em educação pública. Lutar pelo PNE, em nossa perspectiva, significa resistir ao projeto de estado e sociedade que está na PEC 55, na reforma do Ensino Médio e em tanto outras medidas que tem como único objetivo ampliar a desigualdade de condições e oportunidades que marca a história deste país.
Portanto, a aprovação da MP do Ensino Médio não pode significar a derrota de nossa constante defesa de uma escola pública efetivamente democrática, no acesso, na permanência, na construção de sentidos, significados, conhecimentos. Frente a hipocrisia das palavras, resta-nos a coragem da luta! E esta coragem nos faz seguir sempre. Afinal, a gente não quer só comida...
Prof. Dr. Eduardo Donizeti Girotto
DG/FFLCH/USP

Nenhum comentário:

Postar um comentário