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quinta-feira, 31 de maio de 2012

Artigo - "São Paulo Hoje"

Revista Eletrônica de Ciências
São Carlos,  quinta-feira, 31 de maio de 2012.
Número 23, Janeiro de 2004 Artigo


São Paulo Hoje 

http://cdcc.sc.usp.br/ciencia/artigos/art_23/sampahoje.html 

Henrique Ferraz
Estudante de Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP - Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo
e-mail: henriqueferraz_arqurb@yahoo.com.br

Nosso ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso, em ocasião do "Seminário Internacional Centro XXI", disse que “não há mais como nos confortarmos com a cidade no sentido clássico; temos megalópoles, cidades mundiais, o que é um fenômeno bastante complicado. São Paulo será, talvez, no Brasil, a principal candidata à categoria de cidade mundial”.
Ao iniciar o artigo sobre a metrópole paulistana devemos levar em conta as realidades brasileiras no contexto global, e desta maneira vem à tona inúmeras questões: São Paulo hoje é realmente uma cidade global? Para todos seus moradores? Qual trecho de São Paulo segue um padrão mundial – isto é, quantas São Paulo existem (ou co-existem)? Afinal, o que é uma cidade global: ou melhor, em que difere uma cidade global das tradicionais cidades?

O Conceito de Cidade Global

De acordo com a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, a cidade, em sua forma tradicional, é uma organização eminentemente política e social, onde cidadãos são vinculados à esfera pública por meio de direitos e deveres. As antigas fronteiras citadinas (bem definidas) delimitam seu território físico, o qual é considerado como forte pólo de atração populacional, desde a revolução industrial. Neste espaço urbano, um local é fundamental como essência da cidade: o centro, palco dos conflitos e atuações de todos os grupos representados na cidade.
Porém, enquanto construção coletiva, a cidade se modifica na mesma medida que a sociedade que a compõe. Durante o último século, as atividades econômicas de maior expressão mudaram e, com elas, mudou a cidade. De grandes indústrias, as novas ações do capital se encontram no setor terciário (comércio e serviços prestados). Não existem mais os antigos conceitos de limite, já que a cidade deixou de ser regida pela política para ser de domínio econômico – também modificado, pois o capital dos novos tempos não é mais tão fixo (ou nacionalizado), mas flutua, na forma de capital especulativo, atrás de terrenos mais atrativos (graças aos avanços da informatização). Assim, suas fronteiras “fagocitam” outras cidades limítrofes, num ritmo cada vez mais acelerado – processo conhecido como conurbação, ou formação de metrópoles. Também resignificado, o indivíduo deixou seu papel coletivo e político de cidadão, ao ser abstraído de seus direitos, e diminuído, agora, com o principal dever de pagar suas taxas – transforma-se então em contribuinte. O papel político, na cidade de hoje, se concentra nas mãos de um poder público, cada vez mais distante do coletivo e reduzido através da lógica neoliberal de Estado mínimo: aos poucos, este papel se transfere às iniciativas privadas por meio de ingerências, parcerias onde o financiamento do projeto público passa pelas mãos de altos executivos. Mais que meras mudanças, a cidade contemporânea, tida como imagem publicitária, uma cidade-mercadoria, em essência, a cidade-consumo, em busca de investimentos através do marketing, numa bolha de imagens e simulacro, reflete a espacialização destas modificações, tempos sobrepostos no espaço.
As cidades globais atuam como centros decisórios, conectando, através das novas tecnologias, alguns poucos trechos do mundo pela alta densidade de fluxos de informações e do capital financeiro (quer dizer, o capital flutuante que se enraíza em pequenas “ilhas de sofisticação”), e, através da mídia de massa, define a opinião pública e interfere nas mais variadas áreas, de forma bastante eficaz – ao menos, eficaz de acordo com o seu interesse. Aliás, a mídia de massa, associada à indústria cultural, atua na deformação de realidades, construindo um simulacro por colagens fragmentárias do real, sem referência temporal (causalidades, conseqüências e processos históricos) ou espacial (a anulação do entorno imediato por um ambiente virtualizado). É nessa troca, do real pela ficção, que se dita uma arte não democratizada, de consumo rápido e puro modismo publicitário. A troca da cultura (direito universal de cidadania) pela indústria cultural (de caráter repetitivo, evento de consumo, consagração de fórmulas já consagradas, e, por fim, insensível à realidade) é problemática, o que pode ser lido em quatro momentos essenciais:
  • Ao selecionar a arte pelo valor de mercado, cria uma elite cultural, em contraponto à uma massa, inerte e sem identidade – construindo assim a divisão social na arte;
  • A ilusão de uma cultura de acesso amplo, irrestrito e universal é gerada pela mídia, que, ao contrário do que promete, pré-seleciona os seus alvos através da programação por horário e público;
  • Reforça o senso comum medíocre, passado como novidade, mas que repete uma fórmula já consagrada, sem excitar qualquer raciocínio mais complexo dos espectadores;
  • Finalmente, a cultura é tratada como entretenimento, lazer de consumo rápido e fácil fruição, o que banaliza e vulgariza o exercício do raciocínio intelectual.  
A atual forma econômica modifica os espaços urbanos, desconcentrando as metrópoles, ancorando as grandes corporações multinacionais, adulterando a si mesma e incorporando o aumento da informatização. Como conseqüência, amplia mais ainda a acumulação capital, a exclusão social e o desemprego, já que as novas tecnologias não são de fácil acesso ou domínio popular, assim como, tanto o setor terciário emprega menos pessoas que a indústria, quanto a atual indústria também tem menos funcionários que sua versão mais antiga. Desta forma, uma nova configuração espacial vai transformando as cidades contemporâneas, ampliando tanto a favelização das periferias sem limites (regiões cada vez mais desequipadas de investimentos públicos, distantes do centro e das áreas de maior oferta de empregos), como também se ampliam os condomínios e shoppings centers, afastados da região central (numa medida altamente defensiva da classe economicamente alta, como que se esta se enclausurasse em bunkers de altíssima segurança e controle).

São Paulo é uma Cidade Global?


    
       
Cenas comuns em São Paulo: edifícios altamente tecnológicos, exclusão social e poluição visual.
“A variante paulistana da americanidade é essa capacidade de ser duplo, triplo, quádruplo, cristão e pagão, engenheiro de informática e filho de Xangô, pragmático e sonhador, disponível para o transe e para as vagabundagens mais loucas da imaginação e dominando perfeitamente a realidade. A metrópole brasileira consegue conciliar essas contradições sem dissociação esquizofrênica.
Em São Paulo, a gente se sente no Ocidente. Matéria plástica, vidro, concreto, arranha-céus, shopping centers, que destronam, há muito, os supermercados, mas também as antigas livrarias onde se pode adquirir livros do século XVIII (...). Nessa megalópole, que tem algo de Manhattan dos trópicos e que exporta hoje seus produtos industrializados para o Terceiro Mundo, os modelos culturais continuam a vir de fora – da Europa e dos Estados Unidos – e logo se transformam em modismos, são suplantados rapidamente por outros e assim sucessivamente.
(...) São Paulo tornou-se uma das cidades mais cosmopolitas do mundo: italo-franco-lusitano-nipo-germânico-saxâ. Mas não nos enganemos, não é a Europa ou a América do Norte com alguns detalhes exóticos. Tomar São Paulo por pedaço da Europa ou uma réplica de Nova Iorque é nada compreender de Mário de Andrade ou Tarsila do Amaral. Por toda parte, a civilização mistura-se ao primitivismo indígena e aquilo que deixaram os herdeiros dos escravos africanos, cujos atabaques ressoam desde as oito horas da noite, em milhares de terreiros. (...)
(...) A redução de São Paulo à sua ocidentalidade é uma ilusão.”
François Laplantine


AGLOMERADOS URBANOS (1) PAÍSES POPULAÇÃO (EM MILHÕES)
Tóquio Japão 26,4
Cidade do México México 18,1
Bombaim Índia 18,1
São Paulo (2) Brasil 17,8
Nova Iorque Estados Unidos 16,6
Lagos Nigéria 13,4
Los Angeles Estados Unidos 13,1
Calcutá Índia 12,9
Xangai China 12,9
Buenos Aires Argentina 12,6
Fonte: ONU / IBGE / Fundação Seade.

(1) Aglomerado Urbano é o território contíguo habitado com densidade residencial, desconsiderando-se os limites administrativos;
(2) Refere-se à Região Metropolitana de São Paulo.
POPULAÇÃO RESIDENTE  (EM MILHÕES DE HABITANTES)
Área abrangida 1960
1970
1980
1991
1996
2000
Brasil 70,191 93,139 119,003 146,825 157,080 169,799
Estado de São Paulo 12,824 17,772 25,041 31,589 34,121 37,032
Região Metropolitana de São Paulo 4,791 8,140 12,589 15,445 16,583 17,879
Município de São Paulo 3,783 5,825 8,493 9,646 9,839 10,434
Fonte: IBGE, Censos demográficos.
Para o Brasil (e São Paulo, conseqüentemente), a globalização é mais uma fatalidade que uma opção. Neste sentido, apenas alguns trechos de São Paulo podem ser considerados inseridos numa trama dita global, pois, além de reproduzirem a estrutura acima descrita, apresentam os requisitos mínimos para esta conexão mundial, como:

  • Uma imagem referencial (a avenida Paulista, como signo paulistano por excelência);
  • Possuir recursos humanos qualificados;
  • Um sistema de comunicação conectado globalmente;
  • Uma excelente infra-estrutura urbana;
  • Um sistema público ativo e idôneo;
  • Conectar-se com o mundo e com sua região mais próxima (ou seja, além da grande São Paulo, também Campinas, Jundiaí, Ribeirão Preto, Santos, Sorocaba, São José dos Campos, etc.);
  • Apresentar como identidade local a complexidade de uma cidade cosmopolita (devido ao grande número de comunidades estrangeiras);
  • O principal: tentar articular fatores sócio-culturais de alta contradição - o novo e o arcaico, ou seja, a cidade como global, contemporânea, e as gritantes desigualdades sociais, de origem colonial.
Situando-se na periferia do sistema mundial, seus contrastes são bem nítidos e vários problemas se apresentam desta conversão entre novo e ultrapassado:
  • O mercado, financiando um poder público falido, vai criando sua forma de laissez-faire, na medida que os projetos de intervenção pública vão sendo atrelados somente à ingerência do que desperta interesse da iniciativa privada, em última análise, ao que retorne lucro;
  • As telecomunicações, as multinacionais e o setor informal são as três maiores áreas de expansão na cidade;
  • A arquitetura torna-se, muitas vezes, suporte da informação publicitária, quando não suporte do suporte (com um painel publicitário, em revestimento de alumínio, recobrindo todas suas fachadas, igualando todas as ruas comerciais), enquanto que, na gráfica urbana, a cidade é suporte de inúmeros signos – a excessiva exposição aos outdoors deixa as pessoas inertes e anestesiadas, sem estímulo;
  • Uma forte polarização social estigmatiza pessoas por conceitos, como ocupação, etnia ou renda (polarização social esta que gera migrações – internas ao município e entre os municípios da região metropolitana – as quais acabam por reconfigurar espaços de ricos e pobres, fazendo da cidade uma colagem de grandes guetos urbanos);
  • Por último, e como conseqüência final, ocorre a perda da referência local, da antiga São Paulo, ocultada sob uma nova história.
A morte da memória urbana escreve e reescreve sua história, apagando constantemente seu passado, para marcar, a cada dia, novas relações de poder, não mais num movimento de explosão urbana, mas agora de implosão, gerado pela saturação física de seus limites urbanos, pela tentativa de valorização das áreas citadinas, pela migração interna de população e investimentos e pela mudança do caráter econômico da cidade e suas conseqüências, o que gera duas velocidades aos fluxos da cidade: a dos incluídos (no sistema) e a dos excluídos (da cidadania). Crescimento urbano acelerado, dinâmico e autofágico: são movimentos causadores da existência de tal configuração espacial. Os grandes vazios da malha urbana atuam como estoques para investimentos especulativos, que produzem novos espaços sem expandir as fronteiras e deixam um rastro degradado na paisagem urbana – enfim, o território tratado como mercadoria absoluta.
O espaço urbano paulistano é moldado pelo capital especulativo imobiliário, que sofre constantes movimentos migratórios (da avenida Paulista para a avenida Brigadeiro Faria Lima, depois para a avenida Luís Carlos Berrini – movimento a ser melhor explicitado adiante). Este fluxo de capital, de sistemas viários, de ocupação da cidade no fim das análises, gera uma São Paulo em fragmentos, signo de progresso, ampliando os guetos de repressão aos pobres (onde são permitidos) em contrastes com a cidade oficial elitista (onde não são bem quistos). Esta segregação espacial (lê-se: “higienização” da cidade) constrói uma cidade aparentemente homogênea, sem conflitos, o que acarreta na sua morte lenta e gradual como construção coletiva.
     
Acompanhe o crescimento da mancha urbana: em 1910, durante a República Velha; em 1930, com o fim da República do Café e após a 1ª Guerra Mundial; em 1952, após a 2ª; em 1972, no fim do período do milagre econômico; por fim, em 2001, as manchas azuis e verdes representam a densidade urbana.

São Paulo não ficará fora do mercado mundial, até porque o mercado não deixará de lado dezesseis milhões de habitantes. E no encontro – do capital com a cidade –, é a arquitetura que celebra este casamento, recompondo ruínas e adaptando a metrópole para as novas necessidades globais. Assim, a crítica à cidade paulistana contemporânea deixa de ser exatamente uma intervenção construtiva para tornar-se uma adaptação reformista em favor dos mercados – com os fluxos econômicos voláteis, o espaço não deixa de existir, mas precisa de um local com uma estrutura material para abrigá-lo (a mais completa possível). A cidade, sem um futuro previsível, muito menos otimista: basicamente, quatro movimentos explicam o que ocorre na metrópole paulistana, os quais discutiremos a seguir.

1. A Periferia Desassistida

Em primeiro lugar, uma periferia não-oficial (por ausência de investimentos ou equipamentos públicos), autoconstruída e precária, num crescimento tão acelerado quanto o ritmo da exclusão social, transforma, assim, a maioria da cidade (maioria em área e em população) numa grande gleba de exclusão sócio-urbana, que cai no esquecimento ou fica à espera de um ataque especulativo. É na opção mais barata, em uma cidade extremamente cara, que se abriga tal população, geralmente contratada para os serviços menos qualificados e, conseqüentemente, menos remunerados (o que torna tal situação um ciclo vicioso, apagando a pobreza como ator social no palco da cidade).
 
Dois mapas que explicam São Paulo hoje: à esquerda, as regiões mais vermelhas são áreas onde a juventude está mais exposta ao crime e à violência; à direita, as áreas mais claras representam os subdistritos com menor poder aquisitivo. A coincidência não é ao acaso.
São visíveis tanto as novas favelas quanto o inchaço das favelas existentes, como reflexo local da crise econômica mundial, decorrente de um neoliberalismo que se alimenta da exploração e da exclusão. Somam-se ainda vários fatores, tais como:
  • Menor acesso aos serviços e à infra-estrutura urbana;
  • Menor oportunidades de emprego e profissionalização;
  • Maior exposição à violência;
  • Discriminação de todos os tipos;
  • Difícil acesso à Justiça, ao lazer, ao transporte e, em resumo, à cidade oficial.
Tem-se na ilegalidade da propriedade da terra o principal agente de segregação ambiental, que passa pela legislação, pelo mercado fundiário e pelo preconceito, o que leva a população pobre a se instalar nas regiões desvalorizadas, como beiras de córregos e represas, encostas de morros (sujeitos à enchentes e desmoronamentos), regiões poluídas, e, o mais grave, em muitos dos casos como áreas de proteção ambiental – no caso, ao sul, as margens das represas Billings e Guarapiranga, do rio Tietê e, ao norte, as encostas da serra da Cantareira. Nesta configuração, surgem a produção de diversos significados, que formam o aspecto visível: para o planejamento urbano, apenas sub-normalidade; para a força policial, marginalidade; para a população, má vizinhança. Definindo como precárias as relações de trabalho, as resoluções de conflitos ou ainda a ação violenta e preconceituosa da força policial, esta situação acarreta numa explosão de violência urbana jamais vista: altos números de homicídios entre a população pobre e a segregação espacial, que criam uma intrínseca relação habitat / violência – a segregação apresenta-se como reflexo e também motor indutor da desigualdade. A cargo de ilustração, estatísticas apresentam que a cada cem mil habitantes, dez são mortos como vítimas da violência urbana no Alto dos Pinheiros (bairro nobre da região sudoeste da cidade) para cada duzentos e vinte dois mortos no Jardim Ângela (zona sul da cidade, próxima ao Capão Redondo, e considerada a terceira região mais violenta do mundo). Tais estatísticas vão contra a idelogia construída pela mídia em geral, que aponta a elite como a maior vítima da violência urbana (e, conseqüentemente, os pobres como agressores).
Associado a este problema está uma indústria política – resquícios de um país arcaico –, que muitas vezes se apresenta como paternalista ou clientelista, com a troca votos por favores políticos, próximo às eleições (os quais substituem os direitos de cidadania), e, por outro lado, o desenvolvimento de normas e condutas extralegais, impostos à comunidade local, ora com o uso da violência, ora aceitos normalmente, como substituição a um poder público inexistente. Estas condições (de limite tênue de uma guerra civil e da segregação espacial inerente) acabam por serem ocultadas através de diversos meios:
  • Investimentos maciços do capital privado e da maior parte do setor público;
  • Construção ideológica da mídia, que propaga uma visão de simulacros;
  • O próprio IBGE, que deixa suas medições incompletas pela dificuldade do levantamento de dados nas favelas;
  • E também um sistema jurídico, que se organiza sobre regras não universais.
Assim, numa ardilosa construção ideológica, oficializa-se a cidade virtual, escondendo assim a cidade real. Na cidade visível, a lei se aplica: há cidadania. Na periferia, as leis criadas são não-oficiais, mas tal ocupação irregular é consentida nestes guetos, o que não é visto com bons olhos no centro – temos assim a exclusão do direito à cidade. A exceção como regra e a regra como exceção: é necessário romper tal ideologia para dar maior visibilidade à cidade da maioria gritante da população, ignorada pela sociedade.
   
Exemplo do que acontece quando uma favela interessa ao mercado: primeiro os empresários se interessam...
 
... depois o poder público (gestão de Paulo Maluf) limpa a área...
   
 
 
... e os favelados continuam favelados, da favela do Jardim Edith para as margens da represa Guarapiranga.

2. Os Programas de Habitação Social

A segunda caracterização da condição paulistana atual são os programas públicos de habitação popular, insignificantes pela pequena abrangência, devido à grande demanda da população. Na última década, esta condição se divide em três momentos, coincidentes com os partidos assumidos pelas gestões públicas municipais.
  • A gestão da prefeita Luíza Erundina (de 1989 a 1992) trabalhou com conjuntos populares e reurbanizações de favelas. Nestes conjuntos, havia uma rica diversidade de moradias, como meio democrático de acesso a uma habitação digna. Na reurbanização de favelas, o modelo apropriado é muito próximo do programa carioca “Favela-Bairro”, que visa integrar a região irregular (considerada assim de acordo com o planejamento urbano) à cidade oficial por meio de melhorias do espaço público, tais como asfaltamento, iluminação, sistema de esgoto e escoamento das águas pluviais, limpeza urbana, além de nomear ruas e sinalizá-las. Também trabalha com as reformas necessárias nas habitações que se encontram em condições perigosas, assim como a regularização fundiária (já que setenta por cento das habitações são clandestinas ou irregulares). Tanto os projetos de conjuntos habitacionais quanto a reurbanização das favelas defendem a manutenção das populações em seus locais originais, em paralelo com a qualificação do espaço coletivo (praças e jardins). No entanto, principalmente a reurbanização de favelas tende a oficializar a condição precária de sub-moradias, já que a simples reforma sob aspectos estruturais não altera a habitação ou o entorno;
  • A gestão seguinte, de Paulo Maluf (de 1993 a 1996) e também a de seu sucessor, Celso Pitta (de 1997 a 2000), tinham a proposta mais voltada à “higienização” da cidade, ocultando as favelas (e a pobreza visível) atrás dos conjuntos “Cingapura”, que atuam como “paredão” entre as favelas que restaram e as vias expressa (de modo que quem passe de carro não veja mais a favela – ainda existente por detrás dos conjuntos –, mas sim o marketing de sua gestão). Nestes conjuntos, de variação pobre e limitada, o espaço coletivo é subdividido com cercas e grades, o que, além de dividir a população, funciona como citações de mecanismos burgueses de defesa “contra a pobreza violenta”, isto é, uma linguagem baseada na ideologia de mercado, pseudo-ascensão social pelo uso de modelos elitistas. Deve-se acrescentar que, devido a processos não idôneos, muitos moradores de favelas, que foram removidos com a promessa de serem inseridos no programa “Cingapura”, esperam até hoje, dez anos depois, por uma resolução de sua situação, cada vez mais irregular;
  • Hoje em dia, na gestão de Marta Suplicy (de 2001 até o final de 2004), há uma retomada dos programas de reurbanização de favelas, com o mesmo formato da gestão de Luíza Erundina. Também há um projeto para habitação na área central, usando da infra-estrutura já existente e associando os edifícios desocupados ou considerados desqualificados (mais de quarenta mil unidades), como, por exemplo, a requalificação do edifício São Vito (junto ao parque Dom Pedro), a serem reformulados para o uso de habitação. A proposta se baseia na idéia de que o centro, além da infra-estrutura já existente (água, luz, esgoto, telefonia, policiamento, postos de saúde, etc), é a região da cidade com maior relação entre oferta de emprego e a proximidade com a moradia (o que reduz o fluxo de transporte individual e incentiva o uso de transporte coletivo e do comércio central). Mas o projeto, infeliz e inevitavelmente, é atrelado ao capital especulativo imobiliário e aos programas sociais bancários, como o PAR – Programa de Arrendamento Residencial, da Caixa Econômica Federal, só abrangendo, na maioria dos casos, as famílias com renda até cinco salários-mínimos, o que torna o projeto voltado à classe média (cada vez menor, ampliando os bolsões de pobreza) e excludente de boa parte da população que realmente necessita. As reformulações dos edifícios para novos usos, visando habitação, também aguardam o financiamento do BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento (conseqüentemente, seguindo a cartilha do FMI - Fundo Monetário Internacional), moldando-se em suas recomendações e excluindo moradores de rua, camelôs e ambulantes, num processo acentuado de gentrificação.
O projeto de reformulação do edifício São Vito (um edifício de kitnets, que tornou-se um verdadeiro cortiço vertical), que visa atender famílias com renda até três salários-mínimos, é um exemplo de requalificação que encontra problemas de aceitação, no entanto será incorporado à uma mudança de maior porte, que são as reformas do Mercado Municipal e do Museu da Cidade (melhor descrito mais adiante). De acordo com a visão da prefeita Marta Suplicy, a melhor solução para o “entrave” do São Vito seria demoli-lo, mas como não foi bem recebida, ela voltou atrás. Para evitar futuros problemas (como a circulação, manutenção de elevadores, saídas de incêndio, etc) o projeto prevê a redução de trinta por cento de seus atuais moradores, os quais não concordaram com a proposta (e que, por isto, se encontra travada). Quando se tem uma população muito grande residindo em somente um prédio, como o caso do São Vito, existem relações de comércio informal internas, as quais muitas vezes são a única fonte de renda da família. Também não é fácil para quem mora no centro abandonar a região e todas as facilidades inerentes, tais como transporte, fácil acesso a outros bairros, intenso comércio bem próximo, entre outras. Deve-se ainda ressaltar a dificuldade da manutenção da população pobre nos locais onde há projetos de requalificação, seja por não conseguirem pagar o aumento das taxas (provocado pelas melhorias urbanas), seja por acabarem vendendo suas casas (valorizadas) e comprando outras, em região precária, mais distante e de baixo preço. Em resumo, são situações muito delicadas para um raciocínio simplista resolver.

3. O Crescimento do Vetor Sudoeste de Expansão da Cidade

Após analisar os movimentos da cidade que envolvem a população economicamente mais pobre, cabe agora observar, num terceiro momento, os investimentos capitais maciços, começando pelo setor sudoeste da cidade, definido por alguns pensadores como as “novas centralidades paulistanas”. Tal conceito é duvidoso, senão perverso, perigoso e ideologicamente trabalhado, o qual iremos debater ao longo do capítulo.
O primeiro passo para este novo rumo do capital se deu na década de 1960, durante o período do “milagre econômico brasileiro”. Neste momento, houve uma invasão (permitida e incentivada pelo poder público) do capital estrangeiro no país, e, em especial, em São Paulo. O alvo foi a avenida Paulista e suas imediações. A avenida, aberta em 1891 como o novo boulevard da elite cafeeira, ainda conservava, no início dos anos 1960, os antigos casarões dos barões do café, com grandes jardins e plantas raras e exemplares. Em pouco tempo, inúmeras demolições deram lugar a grandes edifícios, representantes das corporações multinacionais que aqui se instalaram, fazendo da Paulista a avenida dos grandes bancos, o coração financeiro da cidade. A lógica que se segue tem a mesma raiz.
Logo em seguida, nos anos de 1980 e 1990, o eixo sudoeste expandiu os limites físicos da cidade, por meio de um movimento de valorização progressiva em novas frentes especulativas – financiadas por maciços investimentos, públicos e privados –, deixando um rastro urbano de deterioração. Os novos alvos do capital se encontram na marginal do rio Pinheiros, nas avenidas Brigadeiro Faria Lima (como ligação da Paulista com a Pinheiros), Luís Carlos Berrini, e por último a avenida das Águas Espraiadas. Nelas, podemos encontrar inúmeros edifícios altamente tecnológicos (“de costas” para a cidade), supervalorizando o espaço privado em detrimento do público, que só se viabilizaram por meio das aberturas de avenidas e da infra-estrutura necessária, cedida por um poder público interessado apenas em organizar os interesses da elite econômica.
 
 
A avenida Paulista: da sua inauguração, em 1891, aos dias de hoje
(a expressão do dinheiro como modelo para as outras partes da cidade).
O ato de projetar cidades à maneira pós-modernas modificou-se em pouco tempo: outrora defendeu propostas frente à racionalização da cidade moderna e o crescimento desordenado destas, concertar sem destruir, refazer sem desalojar, restaurar, criando a partir do que está dado, reatando vínculos tradicionais, requalificando o entorno e valorizando as peculiaridades locais acima das tendências globais, como defesa da cidade contra a ideologia vigente. Mas o discurso pregado hoje por estes arquitetos defende apenas atuações pontuais, restritas e modestas. Contra-prova da falência do sistema global, acaba desintegrando a cidade da periferia para o centro, administrando contradições, escamoteando conflitos e escondendo a miséria. Ao mesmo tempo, afirma os processos mundiais como adaptações locais formalizadas, num crescimento industrial hipertardio, com conseqüente substituição e descarte de trabalhadores, acumulados nas periferias ao longo de cento e cinqüenta anos. Nesta lógica, os bairros de elite se adensam, trazendo consigo comércio e serviços de luxo. Quando a Arquitetura maquia atividades extra-urbanas (do campo da política e do marketing, muitas vezes), perde o controle da cidade, a qual se torna de domínio econômico dos administradores: o território urbano se torna meio de produção e acumulação capitalista.
Os edifícios criam um surto internacional, impessoal, não mais a vertente da Arquitetura moderna paulista (dita “brutalista”, com a essência do concreto aparente), mas uma adaptação narcísica da proposta moderna às novas necessidades do mercado, vazia de crítica construtiva: o pós-moderno e suas fachadas coloridas de vidro, alta tecnologia eletrônica e estrutura metálica exposta. Demonstra dependência cultural, ancorada numa imagem afirmativa e elitista - funde a Paris do passado à Miami do presente. A economia globalizada e suas multinacionais com filiais em São Paulo muitas vezes solicitam a atuação de arquitetos estrangeiros. Os edifícios apresentam em seu interior praças climatizadas e totalmente vigiadas, numa espécie de resumo selecionado da cidade pelo capital. São grandes torres como marco do poder econômico, afastando-se da realidade local, por meio de uma extrema segurança e de um ambiente limpo e estéril. Um exemplo deste modelo é o conjunto Citycorp Center, do arquiteto Giancarlo Gasperini, que se encontra no cruzamento das avenidas Luís Carlos Berrini com a Águas Espraiadas (exposto em maquete – simbolicamente sobre um piso elevado de mármore negro – na Bienal Internacional de Arquitetura e Design de São Paulo, em sua última versão: a extrema segurança frente ao caos urbano).

   
Exemplos de edifícios às margens do rio Pinheiros: alta tecnologia e auto-suficiência para não precisar andar pela cidade.
Os novos tempos trazem à cidade um novo papel, inserindo-a na ciranda internacional do capitalismo avançado. Desmaterialização, desterritorialização e a busca de legislações trabalhistas e ambientais mais maleáveis levantam uma questão: se o capital é definido como flutuante e volátil, por que ele se enraíza aqui e não em outro lugar? Porque, na verdade, ele não é tão virtual assim, como dizem: os altos executivos necessitam de uma rica infra-estrutura, que vai da via expressa (de trânsito de veículos, mas também de informações) à escola particular onde ele irá matricular seu filho, passando por hotéis de luxo, casas de espetáculos (que ofereça arte extremamente requintada), conexões com aeroportos, heliportos, shopping centers, etc. Também é lógico, dentro do raciocínio do capitalismo contemporâneo, que o caos urbano e as contradições entre o ultra-moderno e o arcaico não atrapalhem a produção, mas é a produção que se adapta, da melhor forma possível, a estas realidades, para aumentar a exploração sobre os trabalhadores e os exorbitantes lucros conseqüentes – possíveis aqui, na periferia do capitalismo.
O que questionamos no início do capítulo é a definição destas áreas de investimentos privados como novas centralidades. O conceito de centro, neste caso, refere-se ao poder econômico, mais especificadamente, à afirmação deste. Porém, o sentido do centro é outro: local de conflitos, espaço de convergência e representação de todas as classes sociais, enfim, a cidade como pública. Das praças generosas do centro histórico, passamos às largas calçadas da avenida Paulista, em seguida para os passeios públicos medianos da avenida Brigadeiro Faria Lima, terminando no calçamento de oitenta centímetros da avenida Luís Carlos Berrini e da marginal do rio Pinheiros. Se houver a inversão de valores, nesta ardilosa ideologia capitalista, a violência continuará a crescer indefinidamente, enquanto os executivos buscam novos sistemas de segurança ao invés da cidade ser pensada como um espaço mais justo.

4. O Centro Requalificado

O quarto momento de discussão, o centro histórico de São Paulo, é considerado aqui em sua área expandida, ou seja, da região da Luz até a praça da República, o que compreende uma área de, aproximadamente, trinta e dois quilômetros quadrados. O centro ainda conserva as atividades da Justiça e a Bolsa de Valores de São Paulo, além de um intenso comércio de caráter popular, especializado e diversificado, mas foi desfigurado por diversos fatores, como anúncios sem controle ou limitações, a extrema intensidade do comércio sobrepujando os espaços públicos, um grande fluxo de veículos individuais em ruas que não o comportam, o enorme esvaziamento de seus edifícios (cerca de quarenta mil unidades, como já citado no capítulo anterior, geradas pela fuga das grandes corporações e das sedes do setor bancário rumo ao vetor sudoeste) e um grande número de habitações precárias e cortiços.

O centro da cidade: fluxo de automóveis, edifícios históricos e camelôs.
Assim, a atual forma de atuação nesta área segue em duas frentes. De um lado, a habitação no centro (já discutida no capítulo sobre habitação popular), que se reforça com o retorno de inúmeras secretarias públicas (municipais e estaduais) ao centro, como o caso da Prefeitura (que saiu do Palácio das Indústrias para se alojar ao lado do viaduto do Chá, no “Banespinha”) ou do edifício Martinelli, também ao lado do vale do Anhangabaú, e que hoje abriga treze secretarias municipais, como por exemplo, a SEMPLA (Secretaria Municipal de Planejamento), a SAS (Secretaria de Assistência Social) e a EMURB (Empresa Municipal de Urbanização). Esta medida objetiva levar de volta ao centro todos os funcionários das secretarias (uma soma de milhares de profissionais), os quais se adequam ao perfil exigido pelo programa de habitação na área central (classe média). Com a implementação do tal programa e o retorno dos funcionários públicos na área, espera-se que diminua o fluxo de veículos individuais, valorize o transporte coletivo, incentive o comércio central, aumente a arrecadação de impostos na região (diminuindo a inadimplência de I.P.T.U.’s), aproveitando uma infra-estrutura já implementada (e a mais completa da cidade), além de dar ao centro um uso misto que o ocupe racionalmente, tanto durante o dia como à noite.
Como uma segunda frente de atuação na área central, visando o incentivo ao turismo, há um incremento de inúmeros centros culturais, valorizando todo e qualquer edifício como patrimônio, num gesto extremo de culturalismo, em parcerias públicas-privadas (processo antigamente conhecido como patrimonialismo: hoje, pela óptica dos gestores públicos, funciona como marketing de sua gestão; e do lado dos investidores privados, é abatido de impostos por contrapartidas compensatórias, além de lhes garantir um controle e favorecer a iniciativa de mudança do perfil cultural do centro – das classes populares, para uma arte mais erudita, elitizada ). Visa utilizar-se de edifícios, tombados pelo CONDEPHAAT (Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Turístico) ou ainda usa-se das glebas liberadas pela modernização das redes ferroviárias (em seus antigos armazéns de carga e áreas de manutenção da frota férrea).
São exemplos, por iniciativa do governo do Estado, a Pinacoteca do Estado, o Complexo Júlio Prestes e, em andamento, a Estação da Luz. A Pinacoteca do Estado é projeto do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, que recuperou a forma e o caráter original do antigo Liceu de Artes e Ofícios (arquitetura neoclássica do escritório do engenheiro-arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo, foi tombada como patrimônio pelo CONDEPHAAT em 1982), ao mesmo tempo em que a adaptou às novas necessidades das exposições. O Complexo Júlio Prestes, reformulado pelo arquiteto Nelson Dupré, abriga a Sala São Paulo e a sede da Orquestra Sinfônica do Estado. A Estação da Luz (também tombada pelo CONDEPHAAT em 1982) se tornará Centro de Referência da Língua Portuguesa no Brasil, integrada a estação de conexão entre o trem metropolitano e as linhas 1 e 4 do metrô (reformulação também a encargo do arquiteto Paulo Mendes da Rocha).

 
A Pinacoteca do Estado...
 
... a Estação Júlio Prestes...

... e a Estação da Luz são exemplos de intervenções do Governo do Estado:
o patrimônio histórico nem sempre é pensado do ponto de vista do usuário.
A cargo da Prefeitura, tivemos a reforma do Teatro Municipal (sob encargo da Método Engenharia, concluída em 1991, ainda na gestão da ex-prefeita Luíza Erundina) e, atualmente em andamento, o restauro do Mercado Municipal, do Museu da Cidade, da Biblioteca Municipal Mário de Andrade e a recuperação urbana e ambiental do Parque Dom Pedro, além de requalificar as praças do centro, tais como a praça Roosevelt, a praça da República, do Patriarca e a da Sé. O Mercado Municipal está sendo projeto do escritório do arquiteto Pedro Paulo de Melo Saraiva, que incrementará o edifício com um mezanino contendo seis restaurantes, representantes das diversas culinárias internacionais (embora a Prefeitura negue os conflitos com os atuais usos do mercado, vários açougues e peixarias já fecharam suas portas). A mudança do Palácio das Indústrias para Museu da Cidade – um centro de exposições e artes de uso misto – é reformulação dos arquitetos Marcelo Ferraz, André Vainer e Marcelo Suzuki, que visa usar da parte inferior do Palácio para o museu (o que, de acordo com Marcelo Suzuki, é pertinente, pois em meio à uma arquitetura eclética, surge um figurativismo simbólico: ao invés dos leões de Veneza, temos nas entradas carros-de-bois), enquanto que a parte acima ficará sob uso da autarquia Anhembi-Morumbi, destinando a área para eventos particulares (tais como casamentos, formaturas e afins). A recuperação urbana e ambiental do Parque Dom Pedro é projeto do arquiteto Fernando Charcel e se integra numa região ainda maior (englobando o Museu da Cidade e até o edifício São Vito).

 
 
O projeto do Mercado Municipal: seis restaurantes...

... associados aos atuais usos...
 
... em confronto com o edifício São Vito
Entretanto, os projetos sempre acabam se atrelando ao financiamento privado, já que o poder público não tem possibilidades de dispor sozinho tal montante. Mais uma vez, através de um crédito do BID à Prefeitura, de cem milhões de dólares, as iniciativas saem do papel, no caso, para a recuperação do Parque Dom Pedro, do Mercado Municipal e do Museu da Cidade. Deve-se ater para o fato dos projetos aprovados sempre excluírem, em seus novos espaços, camelôs, ambulantes e moradores de rua, ocupantes indesejáveis para o novo perfil que se quer dar ao centro. O interesse do mercado em investir na cultura, como parceiro do poder público, construindo “ilhas sofisticadas” de entretenimento (banhadas de sistemas de alta segurança como defesa da situação, que beira uma guerra civil), em nenhum momento pensa em espaços coletivos ou democráticos. A segurança dos executivos que freqüentam a Sala São Paulo é garantida por reforço policial, pois em frente se situa uma região problemática, conhecida como a “Cracolândia”, a qual não se insere em nenhum processo de melhorias conseqüêntes do entorno. Em outra situação, como já discutido, o edifício São Vito, que se encontra entre o Mercado Municipal e o Palácio das Indústrias, torna-se foco de atenção não por preocupações em prol de seus moradores, mas por estes se tornarem um enclave no projeto definido para a região. Quando uma área se valoriza por intervenções como as que vemos, os moradores são obrigados a pagar maiores taxas ou a procurar outros locais para viver.
A questão colocada permeia as problemáticas de considerar uma região homogênea e sem conflitos como centralidade. Assim como o vetor sudoeste, sob as circunstâncias apresentadas, a região do centro sofre com a tentativa de um projeto de alteração do perfil de seus usuários e dos usos, de maneira a tornar o espaço estéril por meio de gentrificação, isto é, excluir camelôs e moradores de rua, sem se preocupar para onde irão ou mesmo com a inserção destes em programas de assistência social. Ao propor uma revitalização do centro, acabam moldando como um museu, sem vida, uma realidade montada com demagogia e violência simbólica – a globalização excludente tida como algo positivo. Não se deve iludir: ou considera-se o centro uma área de usos mistos, sem excluir os atuais ocupantes, ou se destrói a atual situação e, no lugar, constrói-se um simulacro, uma espécie de “teatro a céu aberto”, onde uns são bem vindos e outros não – neste caso, melhor mudar o nome “centro”.

Um Ponto Fora da Reta – Os C.E.U.'s

Os Centros Educacionais Unificados são unidades de funções plurais que se complementam. Ele alia o aprendizado escolar à formação completa do indivíduo, sendo um espaço físico que concentra diversas atividades, como o preparo profissional, o incentivo ao esporte, à cultura e às artes em geral. As regiões mais periféricas e segregadas de São Paulo são deficientes de uma infra-estrutura urbana mínima e dos equipamentos que permeiam os bairros centrais. Infelizmente, os órgãos públicos não têm como sanar de imediato todas as carências destas regiões, que formam a maior parcela da cidade de São Paulo, em área e em população. Elas serão incluídas, gradualmente, nos projetos de reformulação, mas ainda levará tempo para que o transporte público consiga incluí-las completamente em sua abrangência.
Desta necessidade, nasceu a idéia dos C.E.U.’s, que buscam levar, mais que o exercício e o direito à cidadania até esses locais, o reconhecimento da cidade real, através da educação, equipamentos públicos e de um espaço coletivo, do qual as comunidades possam se apropriar. A lógica de localização dos C.E.U.’s baseia-se num levantamento das áreas periféricas e na identificação dos pontos mais necessitados, que possam se estabelecer como pólos regionais, a fim de atender o maior número de pessoas possível. Isso implica dois movimentos: primeiramente, o de atrair para o interior da unidade as experiências e os movimentos que estão presentes no contexto mais próximo; em seguida, oferecer experiências significativas à comunidade, considerando como ponto de partida o reconhecimento da cultura local. Como pólo de desenvolvimento da comunidade, o C.E.U. deverá oferecer à população acesso aos programas sociais, promovendo a divulgação e a integração aos mesmos.
Existem diversas críticas a esse programa, no sentido que criam espaços artificiais, que dão as costas à vivência da cidade consolidada e de suas facilidades, reafirmando um caráter de exclusão dessas populações, ao mesmo tempo em que camufla a necessidade urgente de melhorias urbanas. Outras críticas dizem que não se devem inserir todos os equipamentos concentrados, mas seria melhor dissipá-los nos bairros. Alguns ainda levantam uma questão financeira, onde gastos com a educação (de onde foi disponibilizada a verba, dentro do orçamento municipal) devem ser focados em salários e contratações de professores, e não em infra-estrutura (que abrange inclusive assuntos das áreas de cultura e esportes).
Deve-se levar em consideração a boa aceitação das comunidades beneficiadas e ser realista ao reconhecer que as transformações urbanas não irão ocorrer repentinamente, dada situação caótica e emergencial em que a periferia se encontra. Ainda assim, nos C.E.U.’s já inaugurados, há o estabelecimento de um forte convívio social, dado a ausência e distância de lugares públicos qualificados (o C.E.U. Jambeiro tem hoje aproximadamente cinco mil usuários somente aos finais de semana). Tal convívio seria infinitamente menor se as intervenções não fossem concentradas, configurando outras espacialidades que não o grande complexo, enfatizado com as duas torres de caixas d’água de trinta metros cada, uma ao lado da outra, as quais configuram uma espécie de pórtico de acesso, marcando o caráter da intervenção de valorizar a comunidade e sua auto-estima. Sobre gastos, isto parte de uma política educacional que valoriza o aluno ao invés do professor.
 
   
Os Centros Educacionais Unificados levam equipamentos públicos para as periferias, tais como creches, teatros e piscinas
Cada unidade do C.E.U. conta com:
  • Centro de Educação Infantil (CEI) para trezentas crianças;
  • Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) com novecentas vagas;
  • Escola de Ensino Fundamental (EMEF) para mil duzentos e sessenta estudantes;
  • Piscinas (com pronto-socorro para os exames médicos);
  • Teatro/telecine para quatrocentos e cinqüenta lugares;
  • Biblioteca;
  • Campos e quadras esportivas;
  • Pista de skate;
  • Uma grande área gramada, onde há um forte convívio social.
Dentro dos C.E.U.’s, comércio não é permitido.

Fontes de Pesquisa:

  • MEYER, Regina. “São Paulo: Crescimento e Pobreza”, São Paulo: Loyola. 1976.
  • ROLNIK, Raquel. “A Cidade e a Lei”, São Paulo: Studio Nobel/FAPESP. 1999.
  • ARANTES, Otília, VAINER, Carlos e MARICATO, Ermínia. “A Cidade do Pensamento Único”, Vozes. 2000.
  • ARANTES, Otília. “O Lugar da Arquitetura Depois dos Modernos”, São Paulo: EDUSP. 2000.
  • BRUAND, Yves. “Arquitetura Contemporânea no Brasil”. Perspectiva. 1999.
  • MARX, Murillo. “Cidade no Brasil: Em que Termos?”, São Paulo: Studio Nobel. 1999.
  • ROLNIK, Raquel. “Folha Explica: São Paulo”, São Paulo: Publifolha. 2001.
  • ARANTES, Antonio A.. “Paisagens Paulistanas: Transformações do Espaço Público”, Campinas: Unicamp. 2000.
  • SEGAWA, Hugo. “Prelúdio da Metrópole: Arquitetura e Urbanismo em São Paulo na Passagem do Século XIX ao XX”, Ateliê Editorial. 2000.
  • PERRONE, Carlos. “ São Paulo por Dentro: Um Guia Panorâmico de Arquitetura”, São Paulo: Senac. 2000.
  • ROLNIK, Raquel. “O que é Cidade”, Brasiliense. 1988.
  • FRUGOLI JÚNIOR, Heitor. “Centralidade em São Paulo: Trajetórias, conflitos e negociações na Metrópole”, São Paulo: EDUSP/FAPESP/Cortez. 1999.
  • BONDUKI, Gabinete do Vereador Nabil. “São Paulo: Plano Diretor Estratégico – Cartilha de Formação”,segunda edição, São Paulo: Caixa Econômica Federal. 2003.
  • Correio eletrônico enviado pela professora e mestra em Arquitetura e Urbanismo Ruth Verde Zein em dezembro de 2006.
© Revista Eletrônica de Ciências - Número 23 - Janeiro de 2004.

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